Orar en(canto).

Dentro da grande gaveta cultural em que o Cristianismo se move, encontramos gozosas manifestações do ser humano que anseia pelo Alto – Bom, Belo e Verdadeiro. Elevam o espírito pela gradeza que emergem, pelo colóquio feito silêncio ou pelo silêncio feito Palavra(s). E o Louvor brota nestes encontros que o impulsionam a ser o que ele próprio é – culto e cultura, cultura cultual.

A Liturgia é diálogo do Divino em convívio com o Humano. Resulta da vida de um, embalado na ternura do Outro. Ali o alimento é Ele próprio… novo Natal! O Verbo Incarnado sobre o altar – Mistério Pascal – oferenda viva, por nós e para nós. E a Igreja nasce e faz-se, no agrupar dos grãos de trigo que feitos Corpo nos fazem Cristo.

Os sentidos entorpecidos acedem ao convite à vigilância! A cor, o incenso, as luzes, o movimento – o corpo reza pela postura, pela mente, pela voz. Canta e reza, reza cantando. É desta torrente que destaco, num corpo que respira a dois pulmões – culto e cultura – uma figura ímpar da Música Litúrgica no panorama português e quiçá europeu. Trata-se, claro está, do Padre António Ferreira dos Santos (1936). Não é minha intenção deter-me sobre a figura, mas sobre a obra.

A música litúrgica bebe das fontes da Sagrada Escritura e carrega a Tradição da Igreja que louva cantando. Do gregoriano à polifonia, dos hinos e corais às Missas compostas por afamados mestres clássicos a liturgia viveu sempre da qualidade e da elevação. Culto e cultura de mãos dadas e respirando a brisa que os envolvia. No contexto da composição litúrgica do pós-Vaticano II, Ferreira dos Santos destacou-se pela capacidade de compreender que num cântico o texto é o soberano.

Variadíssimas composições da sua autoria revelam um aturado esforço para submeter as soltas melodias à pauta que o texto exigia. E deste modo, texto e música tornam-se num instrumento único que permite compreender o que celebrarmos e rezar o que cantamos. Pensemos no conhecido cântico «Eu vi a Cidade Santa» e reflitamos o pormenor da melodia que sobe e desce, como sobe e desce a contemplação do orante. Entre mais agudos e mais graves, a música diz o texto, fala, exclama com o coração ardente da estupefação ante a admirável grandeza que lhe é concedida! E o povo reza, porque canta e a assembleia louva em uníssono o Bom e Belo Deus. E a fé é o âmago que alimenta, mantém e sustém esta misteriosa e efusiva expressão da arte pela música.

Pensemos também na introdução escrita para o cântico exequial «Felizes os mortos» que mistura sabiamente o Dies Irae gregoriano e o Aleluia Pascal. Cristo é Ressurreição e Vida, a morte nada pode contra Ele, e por Ele nada contra nós. A música canta a fé, não é acessória é essencial. Diz o que cremos e solidifica o que professamos. 

A «Paixão segundo São João» ou o «Requiem à memória do Infante D. Henrique» – primeiro em língua portuguesa – são obras de excelência que dizem o músico e simultaneamente o homem crente. Ouvi-los ajuda-nos a compreender a grandeza do Mistério da Fé, porque a música expressa o que uma imagem não consegue. E quando as duas estão associadas, a memória não as varre.

Música no Culto, Música na Cultura… génese do crescimento e essência do ser humano. Escutemos: Corações ao Alto!

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Retrato - Inocêncio X.