À volta da cultura e da música, evocando Bento XVI.

Chega-nos o convite para escrever no Crescer ainda no rescaldo do falecimento do papa emérito Bento XVI. A sua partida foi ocasião para textos que avaliam o seu perfil de teólogo, bem como o significado seu pontificado interrompido pela inesperada renúncia de 2013. Foi também momento para palavras que exprimem as tensões latentes na Igreja, alimentando uma contraposição de pontificados mais ou menos declarada. Não é este o espaço para uma avaliação, certamente pertinente, do pontificado de Bento XVI.

Tendo em conta o título desta rubrica – Em diálogo com arte e cultura – e o contexto desta morte, vieram-nos à mente dois aspetos que gostaríamos de partilhar com os leitores do Crescer, sobre a cultura e a música.

Da visita apostólica de Bento XVI a Portugal em 2010, recordamos o seu encontro com o mundo da cultura no Centro Cultural de Belém. Teve então oportunidade de evidenciar na cultura o conflito entre o presente e a tradição, para referir que este conflito se exprime na «crise da verdade», expondo que esta é «o “Logos” eterno, que ganhou expressão humana em Jesus Cristo». O pontífice pôde então regressar a um dos temas mais caros do seu pontificado: a afirmação da verdade face ao relativismo. Sempre com a busca da verdade ao fundo e cruzando-a com a beleza, o discurso cinzelou uma expressão que vale a pena reter: «Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza». Esta beleza que habita a vida humana não pode dispensar, a seu ver, aquele que é a verdade.

No domínio da cultura é reconhecido o apreço de Bento XVI pela música, que cultivava pela escuta e até pela execução ao Piano. Em abril de 2007, após um concerto no Vaticano, por ocasião dos seus 80 anos, teve oportunidade de dar graças a Deus por ter posto ao seu lado «a música quase como uma companheira de viagem que sempre me [lhe] ofereceu conforto e alegria». Reconhecendo que a música não se reduz à esfera eclesial, considerou em julho 2015, já após a renúncia, que «ela encontra a sua fonte mais profunda na liturgia no encontro com Deus». Já antes, em abril de 2010, por ocasião de um concerto no aniversário do seu pontificado, tinha juntado às potencialidades espirituais da música, o seu valor humano e pedagógico num quadro de sociabilidade: «Apraz-me observar que precisamente a música é capaz de abrir as mentes e os corações à dimensão do espírito e conduz as pessoas a levantar o olhar para o Alto, a abrir-se ao Bem e ao Belo absolutos, que têm a nascente última em Deus. A alegria do canto e da música são também um convite constante para os crentes e para todos os homens de boa vontade a empenharem-se para dar à humanidade um futuro rico de esperança. Além disso, a experiência de tocar numa orquestra acrescenta também a dimensão coletiva: os ensaios contínuos levados a cabo com paciência; o exercício de escutar os outros músicos; o compromisso de não tocar “sozinhos”, mas de fazer com que as diversas “cores orquestrais” – mesmo mantendo as próprias características – se fundam na unidade; a busca comum da melhor expressão, tudo isto constitui uma “palestra” formidável, não só a nível artístico e profissional, mas também do ponto de vista humano global».

Por ocasião da morte do pontífice, Pierachille Dolfini, jornalista que se dedica à crónica musical, teve oportunidade de evidenciar no jornal italiano Avvenire (8/1/2023) os compositores preferidos de Bento XVI, enunciando Bach, Mozart e Beethoven. Socorrendo-nos daquela recolha deixamos aqui alguns excertos de Bento XVI sobre aqueles compositores, a que juntamos a possibilidade de ouvir algumas das obras evocadas.

Sobre J. S. Bach (1685-1750), diria em agosto de 2011 que «a escuta da sua música evoca quase o correr de um regato, ou então uma grandiosa construção arquitetónica, em que tudo está harmoniosamente encadeado, como que a procurar reproduzir aquela harmonia perfeita que Deus gravou na sua criação». Ainda no mesmo mês acrescentaria em audiência: «Regressa à minha mente um concerto de músicas de Johann Sebastian Bach, em Munique da Baviera, dirigido por Leonard Bernstein. No final da última peça, uma das Cantatas [BWV 140: Wachet auf, ruft uns die Stimme], senti, não por raciocínio, mas no profundo do coração, que quanto eu ouvira me tinha transmitido a verdade, a verdade do sumo compositor, impelindo-me a dar graças a Deus. Ao meu lado estava o bispo luterano de Munique e, espontaneamente, eu disse-lhe: “Ouvindo isto, compreende-se: é verdadeiro; são verdadeiras a fé tão forte e a beleza que a presença da verdade de Deus exprime de maneira irresistível”».

Sobre W. A. Mozart (1756-1791) e o seu Requiem teve oportunidade de dizer em setembro de 2010: «Permiti que eu diga mais uma vez que há um afeto particular que me liga, poderia dizer desde sempre, a este sumo músico. Todas as vezes que ouço a sua música não posso deixar de me recordar da minha igreja paroquial, onde, quando eu era jovem, nos dias de festa, era executada uma sua “Missa”: no coração eu sentia que um raio da beleza do Céu me tinha alcançado, e sinto esta sensação todas as vezes que, também hoje, escuto esta grande meditação, dramática e serena, sobre a morte [Requiem]. Em Mozart tudo é harmonia perfeita, cada nota, cada frase musical é assim e não poderia ser de outra forma; também os opostos se reconciliam e a Mozart’sche Heiterkeit, a “serenidade mozartiana” tudo envolve, em cada momento. Trata-se de um dom da graça de Deus, mas é também o fruto da fé viva de Mozart, que – sobretudo com a sua música sacra – consegue fazer transparecer a resposta luminosa do Amor divino, que dá esperança, também quando a vida humana é dilacerada pelo sofrimento e pela morte».

Finalmente, o apreço de Bento XVI por L. Beethoven (1770-1827) exprimiu-se em palavras sobre a sua 9ª Sinfonia em julho de 2012: «Não obstante siga essencialmente as formas e a linguagem tradicional da sinfonia clássica, Beethoven faz sentir algo de novo já a partir da amplitude sem precedentes de todos os movimentos da obra, que se confirma com a parte final introduzida por uma dissonância terrível, da qual se separa o recitativo com estas palavras famosas: “Ó, amigos, não estes tons; entoemos outros mais agradáveis e jubilosos”, palavras que num certo sentido “viram a página” e introduzem o tema principal do Hino à Alegria. Com a sua música, Beethoven desenha uma visão ideal de humanidade: “A alegria concreta na fraternidade e no amor recíproco, sob o olhar paterno de Deus” (Luigi Della Croce). A alegria que Beethoven canta não é uma alegria propriamente cristã, mas é o júbilo da convivência fraterna dos povos, da vitória sobre o egoísmo, desejo de que o caminho da humanidade seja caracterizado pelo amor, quase um convite que ele dirige a todos, para além de qualquer barreira e convicção».

Este percurso pelos compositores de Bento XVI poderia ser mais longo e Pierachille Dolfini tinha-o prolongado em 2021 quanto destacou os 10 compositores por ele mais apreciados, transcrevendo as suas palavras. As palavras que referimos bastam, contudo, para a evocação de Bento XVI a propósito da cultura e da arte que nos aproximam daquele que é a verdade, contribuindo para que sejamos «lugares de beleza».

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