João Batista medita no deserto.

Caravaggio pintou várias vezes João Batista, desde o impúdico estendido sobre peles de animais (1602, Roma, Pinacoteca Capitolina), realizado em momento crucial do seu atribulado itinerário e destinado ao palácio dos Mattei, até ao da Galleria Nazionale d’Arte Antica di Palazzo Corsini, em Roma, de 1606. Optei, todavia, por esta pintura encomendada pelo banqueiro lígure Ottavio Costa. Tanto apreciou a obra que mandou fazer cópia para o oratório previsto (Constante) e ficou com a obra em Roma. Outra cópia se conserva em Nápoles, no Museo de Capodimonte. Em testamento proibia os herdeiros de se desfazerem das obras de Caravaggio. Mas os anos passam … e agora a obra está em museu americano.

João Batista aparece como jovem pensativo no deserto ou bosque, a meditar nas misérias humanas e a convidar à conversão. O parente de Jesus está ao lado de um carvalho com folhas amarelecidas, outonais. Parece evocar as palavras do Precursor aos fariseus e saduceus: “O machado já está posto à raiz das árvores e toda a árvore que não produzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo” (Mt 3,10). Os comentadores bíblicos dos primeiros séculos interpretavam que o machado está perto da raiz das árvores infecundas, mas ainda não as cortou. As palavras severas de João são advertência à conversão.

Na pintura há vários indícios de caducidade. Como o ramo cortado ao lado da cabeça de João e as canas que formam a cruz da sua mão direita. A figura do jovem, a partir de um modelo de adolescente de bairro romano, manifesta energia interior e uma luz inatural banha o seu corpo no escuro do bosque, de sombras espetaculares. Os panejamentos tipicamente caravagescos têm abordagem barroca, como togas senatoriais da estatuária antiga.

A frequência de representações de João Batista para alguns é vista como em sintonia com o programa da Contrarreforma católica, valorizando o sacramento do Batismo. Porém aqui não se representa o batismo de Jesus, nem se entra nas polémicas teológicas. O jovem pensativo, na expectativa do Verbo encarnado, surge como das personagens mais apaixonantes da história bíblica, da conexão entre o antigo e o novo testamento. Mesmo com lábios cerrados, grita: “no deserto abri um caminho para o Senhor, na estepe aplanai uma vereda para o nosso Deus” (Is 40, 3).

Só experiências de deserto preparam novos tempos para a humanidade.

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Via Sacra meditada de forma artística.

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Amén, o Papa Francisco responde.